O Café Arcádia na história tertuliana da Lusa Atenas


As tertúlias, formadas por um grupo de pessoas dadas às letras, às artes ou, duma maneira geral à cultura, derivam da Arcádia Lusitana ou Olissiponense do século XVIII, que funcionou como espécie de tertúlia dos tempos modernos e que se chamava então “Academia”, caraterizando-se pela tendência crítica e por uma reação contra a má literatura, que agitou espíritos e fomentavam acesas polémicas.

São célebres as tertúlias do Café Arcádia de Coimbra, tuteladas então por Miguel Torga, mas também as da “Brasileira”, da “Central”, do “Nicola”, da “Sírius”, da “Briosa”, do “Montanha”, do “Internacional”, do “Mandarim”… Todas elas, podemos dizer, tiveram uma influência notável na vida cultural da Lusa Atenas.

É, no entanto, do velho Café Arcádia, entretanto encerrado como muitos outros, que hoje vos convido a conhecer um pouco mais da sua história.

Apresento então uma pagela com o resultado da pesquisa sobre a história e os pacotes de açúcar que conheço deste café. Os dois pacotes de açúcar apresentados diferem na forma de identificação da mesma empresa impressora do papel de embalagem: “coel-LISBOA” e “coel”, existindo, no entanto, variações de tonalidade da cor dourada/esverdeada.

Quem conhece outros pacotes aqui não apresentados que queira partilhar e enriquecer mais esta história do Café Arcádia?

O Café Arcádia que começou por ser Pastelaria Arcada

A sociedade elegante de Coimbra a partir de 23 de dezembro de 1921 passou a marcar os seus “rendez-vous” na nova Pastelaria Arcada na Rua Ferreira Borges. Esse luxuoso e elegante estabelecimento foi uma arrojada iniciativa de um galego, de nome José Garcia, e do conimbricense Caetano Rocha. As suas magnificas salas, decoradas em estilo árabe pelo distinto artista António Eliseu, tinham um tom exuberante para responder à mais seletiva clientela da cidade. A pastelaria, da melhor qualidade, era confecionada em fábrica própria, construída para o efeito na Avenida Navarro. Tanto luxo, tanta ambição mas não durou muito tempo nas mãos de José Garcia e Caetano Rocha e acabam por ceder a Pastelaria a uma sociedade constituída por Froes & Rôxo. 

Entretanto, em 1948, uma nova sociedade constituída, entre outros, por Manuel Maria Gaitas, antigo negociante de peixe, e pelo “senhor Abel” que tinha sido empregado de mesa do Café Nicola, compra o trespasse e, abre, agora, com o nome de Arcádia. Aparece como funcionário José Maria Cerveira, genro de Manuel Maria Gaitas, que acaba por comprar parte da sociedade, e em novembro de 1950, José Maria Cerveira passou a ser o dono do Café Arcádia e a partir daí conhecido como "Zé Maria do Arcádia". 

Este café foi o centro de tertúlia desportiva dos doutores (elementos da comunidade académica) de Coimbra, adeptos da Académica, por oposição ao Café Santa Cruz, ponto de encontro dos futricas (elementos sem estudos universitários), frequentado pelos unionistas (adeptos do União de Coimbra).

Do amplo Café Arcádia, o lado esquerdo de quem entra era reservado aos teóricos da Académica que passaram a ter ai sua “residência”. Nas linhas escritas pelas memórias dos tertulianos do Arcádia, estes teóricos da bola, em domingo de jogo e de orelhas coladas ao rádio, sofriam ao som da voz de Manuel Gaspar, comentador dos jogos da Briosa na Emissora Regional. E como teórico da bola, “a paixão pela Académica era alimentada nas tardes perdidas no café Arcádia”, levando o jornalista a dizer o que pensava e o que não pensava.

Era também o local preferido dos treinadores da Académica Cândido de Oliveira, Pedroto, Tellechea, etc… Faziam-se as equipas, discutiam-se opções técnicas, choravam-se derrotas e festejavam-se vitórias. 

Por sua vez, o lado direito  do café estava reservado aos forasteiros e era onde se sentavam as senhoras provenientes de uma elite burguesa que à volta das mesas a abarrotar de torradas e galões se ocupavam das bisbilhotices sociais. A discussão política era deixada para a vizinha A Brasileira.

As tertúlias, formadas por um grupo de pessoas dadas às letras, às artes ou, duma maneira geral à cultura, derivam da Arcádia Lusitana ou Olissiponense do século XVIII, que funcionou como espécie de tertúlia dos tempos modernos e que se chamava então “Academia”, caraterizando-se pela tendência crítica e por uma reação contra a má literatura, que agitou espíritos e fomentavam acesas polémicas.

Terá sido em meados da década de 1960 que o Dr. Adolfo Correia da Rocha, até então cliente diário do café A Brasileira, e que mantinha consultório ali bem perto num 1º andar do Largo da Portagem, começou a frequentar o Arcádia. Para esta mudança de poiso muito terá contribuído a recente amizade estabelecida com o então dono e também proprietário do edifício, José Maria Cerveira, fruto das grandes caçadas que realizavam com outros companheiros. Foi assim neste espaço de tertúlias que, sob o pseudónimo literário de Miguel Torga, este poeta e escritor terá concebido algumas das suas obras. 

Para além de Miguel Torga, o Café Arcádia foi ainda, durante décadas, lugar de encontro de outras personalidades como sejam os médicos Fernando Vale, Mário Braga Temido, Guilherme Oliveira, o professor Afonso Queiró e dois futuros ministros da Educação: Veiga Simão (o último do Estado Novo) e Eduardo Correia (o primeiro pós-25 de Abril), entre outros.

O Café Arcádia, que no seu período auge chegou a ter 19 empregados, foi portanto também um lugar importantíssimo na cidade Lusa Atenas durante cerca de meio-século já que, a 4 de Maio de 2000, fechou as portas, dando lugar a um pronto-a-vestir. Não terá assim resistido à crescente perda de clientes, fruto também da grande descaraterização, nos últimos anos, da Baixa Coimbrã e que já tinha provocado o encerramento, 5 anos antes, de outro mítico café, A Brasileira.

Como curiosidade e bem a propósito dos pacotes de açúcar a seguir representados, conta José Maria Cerveira que, nos primeiros anos, tinha uma casa de Lisboa, a Luso-Brasileira, que lhe concedia um crédito de 50 contos para a aquisição dos lotes de café daquela marca. Mas apercebendo-se que o negócio não ia bem e que era o torrador de café quem ganhava mais dinheiro naquele processo, uma vez que era ele quem “importava o café, torrava-o, fazia as misturas, nos lotes, e depois ia distribuir”. Foi então por influência de um amigo que trabalhava na “A Caféeira”, Henrique Ildefonso, sob o pretexto de lhe passar a comprar os lotes de café dessa marca, que aprendeu o “segredo do café”. Passou então a fazer as suas próprias misturas das várias qualidades e origens de café, tendo montado um torrador a lenha em Barrô, aldeia do concelho de Águeda de onde era natural o seu pai. Foi nesta altura, ainda antes do 25 de Abril de 1974, que conseguiu assim ganhar uns “tostõezitos”. Segundo o próprio, era o único torrador de café em Coimbra, tendo até equacionado em vender a outros cafés da cidade. No entanto, após algumas visitas, não lhe tendo agradado as condições das montras onde estes guardavam o produto, desistiu rapidamente dessa ideia. Entretanto, dá-se a revolução dos cravos e, com a perda das ex-colónias, o negócio da torra do café vai por água abaixo, com o quilo de café a passar de 20 escudos para os 300 escudos. Teve assim de abandonar a torrefação, começando novamente a comprar o café em lotes. Sem certezas e sem outra informação, podemos especular que José Maria Cerveira possa ter passado a comprar os lotes de café da “A Caféeira” ao seu amigo, podendo ser desse período os pacotes de açúcar desta marca aqui apresentados.

Partilho a pagela em formato pdf, que poderão descarregar aqui.


Fontes: 
- “A Brasileira” de Coimbra, História arquitetónica de um café, Lília Andreia Félix Coutinho, Coimbra, Julho 2011
- “Café Arcádia”, http://astiascamelas.blogspot.com/2018/03/cafe-arcadia.html consultado em 15/09/2020
- Coisas sobre Coimbra, O pica e a Briosa, António  Curado, Livraria Almedina

Nota: Post publicado inicialmente a 18 maio 2021 em https://www.facebook.com/pacoteca.acucar


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